Em série de encontros sobre justiça social, participantes definem coletivamente os temas que serão abordados a cada mês. Iniciativa busca criar espaço de reflexão sobre as experiências práticas voltadas à construção de uma sociedade mais justa. Foto: Raul Spinassé.
BRASÍLIA – A justiça é um fim em si mesmo ou um meio para a construção de uma sociedade harmônica e pacífica? O que implica considerar uma coisa ou outra? Como é possível superar a lógica do conflito presente na maneira como pensamos as relações sociais e também a luta por justiça? Como refletir sobre um conjunto de princípios e valores essenciais à promoção da justiça em um cenário que distorce o verdadeiro sentido da moralidade?
Foi com essas questões em mente que o escritório de assuntos externos da comunidade bahá’í do Brasil promoveu, em 2022, uma série de encontros presenciais em Brasília. A iniciativa partiu do reconhecimento de que, em diferentes contextos, pessoas empenhadas na construção de uma sociedade mais justa sentem-se solitárias em seus esforços ao terem que lidar com as contradições que surgem no processo, sem encontrar um espaço apropriado para compartilhar algumas dessas tensões.
Desta maneira, mais que um ambiente formal para aprofundar o entendimento sobre as premissas que orientam a busca por justiça no país, buscou-se fortalecer uma rede de amigas e amigos, desejosos de aprender uns com os outros sobre as diferentes iniciativas. Uma característica marcante dos encontros foi a diversidade dos participantes. Reunindo pessoas religiosas e não religiosas, membros de uma variedade de organizações da sociedade civil, profissionais de diferentes campos e assessores parlamentares, as conversas avançaram desde as experiências práticas até os fundamentos que sustentam os modos de pensar e agir sobre a realidade.
Como ponto de partida do diálogo, o grupo avaliou que seria oportuno refletir sobre como diferentes visões a respeito da natureza humana estão expressas nas estratégias de promoção da justiça social ou de enfrentamento às injustiças. Felipe Moulin, coordenador executivo do Instituto Maria e João Aleixo (IMJA), apresentou o marco de ação que tem orientado o IMJA no desenvolvimento de seu trabalho e alguns dos desafios e reflexões que surgem no esforço de torná-lo realidade. “Reconhecemos, na sociedade brasileira, a existência de uma disputa de narrativas essencial para o modo como pensamos e construímos a realidade. A superação das representações tradicionais sobre as periferias, favelas e seus sujeitos é, portanto, fundamental para transformar e pautar uma agenda democrática a partir do protagonismo dessas pessoas”, comentou.
Para abordar tais questões, o IMJA trabalha com o que denomina “paradigma da potência” em contraponto à “pedagogia da monstrualização”. Nesse esforço, busca-se superar a lógica de ausência e carência frequentemente presente nas iniciativas direcionadas às populações periféricas e faveladas, para abordá-las em suas complexidades, diversidades, fortalezas e potencialidades.
Dentre os temas abordados ao longo do ano estiveram os paradigmas sobre natureza humana prevalecentes nas iniciativas de promoção da justiça social, desafios emergentes no campo dos direitos humanos e a relevância da educação universal para a transformação da realidade. Fotos: Nabil Sami.
Essas provocações levaram o grupo a seguir a conversa a partir de empreendimentos que buscam promover protagonismo e autonomia em diferentes territórios, em especial a partir de processos educacionais inclusivos e abrangentes. Uma ideia que parece ter ressoado entre os presentes é a de que a construção da capacidade de sonhar por um futuro melhor convoca a reflexão sobre que tipo de ambiente deve-se criar para que isso seja possível. Assim, a experiência comunitária emergiu como um enquadramento relevante ao se considerar o desenvolvimento da autonomia.
Para aprofundar tais explorações, membros da comunidade bahá’í de Brasília compartilharam seus esforços em construir o que chamam de “uma comunidade vibrante” através da implementação de um programa educacional bahá’í aberto a todas as pessoas. A partir de estudo, reflexão e consulta, os participantes são convidados à ação, buscando traduzir sua visão de uma nova sociedade em iniciativas concretas, capazes de envolver um número crescente de amigos. No caminho, os envolvidos transformam a si próprios e a realidade da comunidade em que estão inseridos, cultivando uma nova relação com as instituições ali presentes.
Pedro Soares, coordenador desta iniciativa no Distrito Federal, mencionou que um dos princípios da Fé Bahá’í é o da educação universal, ou seja, tem-se a visão de que as massas da população têm o direito – e também o dever – de participar da produção, aplicação e disseminação do conhecimento. “As atividades promovidas por essa comunidade são voltadas para todas as pessoas do território e buscam romper as fronteiras entre nós e eles”, afirmou.
No processo, ficou claro ser necessário abordar estratégias que incluam em seu escopo pelo menos três protagonistas da busca pela justiça: os indivíduos, as comunidades e as instituições e considerar as relações entre eles. No que diz respeito à vivência comunitária, reconheceu-se que as pessoas existem na relação umas com as outras. “Somos seres relacionais e atribuímos sentido à nossa existência também a partir de uma vivência coletiva. Como pensamos o que é uma comunidade? Qual o poder de uma comunidade ao atuar sobre a realidade e contribuir à transformação das próprias pessoas que ali habitam?”, compartilhou Luiza Cavalcanti, membro do escritório de assuntos externos da comunidade bahá’í do Brasil.
Nesse aspecto, o grupo identificou que o olhar prevalecente no país para as relações entre indivíduos, comunidades e instituições encontra-se fortemente influenciado por uma perspectiva colonizadora, o que impõe limitações para se pensar a respeito. Assim, considerou-se oportuno compreender sobre a contribuição dos povos originários, ameríndios e negros para a construção de uma sociedade mais justa, aprendendo sobre os pressupostos de onde partem e sobre como se expressam nas experiências concretas. Nesse momento, lançou-se luz também para o racismo estrutural, desafio fundamental para o campo da justiça social no Brasil.
Diversidade de experiências e perspectivas foi marca importante dos encontros. À esquerda, representantes da sociedade civil durante a primeira reunião do grupo. No centro, o professor Marcos Alan Ferreira explora abordagens sobre justiça social que podem ser úteis para os próximos anos. À direita, Pedro Soares compartilha a experiência com a implementação de programa educacional bahá’í no Distrito Federal. Fotos: Nabil Sami e Raul Spinassé.
Na conversa, consensuou-se que o sentido de pertencimento do povo brasileiro ao país deve ser produzido a partir do conhecimento da sua história, narrada por sua própria gente. Para tanto, parece ser essencial pensar sobre o desenvolvimento de uma educação que pretende ser libertadora em muitos sentidos. Conhecer a gravidade da opressão a que foram – e ainda são – submetidas as populações negras e indígenas deve ser uma etapa da trajetória de reparação e reconstrução.
Essas reflexões, finalmente, conduziram o grupo a tratar sobre as múltiplas violações de direitos humanos vivenciadas por grupos expressivos da população. Nesse percurso, se avaliou que parte da sociedade tem legitimado tais violações e contribuído para sua reprodução. O modo como determinadas instituições abordam as questões relacionadas parece contribuir nesse sentido. São ideias que vão ganhando capilaridade e raíz e fundamentam atitudes e formas de agir sobre a realidade. Nota-se, na avaliação dos participantes, aquilo que foi definido como um “desmoronamento da noção de humanidade” e um “agravamento da crise ambiental, climática e humanitária”. Quais são, portanto, as ideias que estão ganhando força e contribuem para o esgarçamento do tecido social? Como estão presentes e impactam o funcionamento das instituições? E, por fim, como é possível alcançar clareza sobre elas e transformá-las?, foram algumas das perguntas abordadas.
Dentre outros temas tratados estiveram, ainda, explorações sobre as fronteiras e os contornos das formas de se promover justiça social relevantes para os próximos anos e as aprendizagens históricas sobre o conceito de justiça.
Em 2023, o grupo voltará a se reunir e espera incluir um número ainda maior de perspectivas e experiências. Ao longo do ano, serão publicados artigos aprofundando cada uma das temáticas e reflexões.